Festa do Quilombo
Durante o Ciclo de Reis, cerca de 43 grupos entre 26 reisados, três guerreiros, oito bandas cabaçais, seis lapinhas, centenas de entremeios e músicos tomam as ruas de Juazeiro do Norte no Ceará. É o Quilombo – tradicional festa popular que acontece nos dias 25 de dezembro, primeiro e seis de janeiro.
A celebração ocorre onde ficam as sedes dos grupos de Reisado, como nas comunidades brincantes dos bairros Romeirão, João Cabral, Parque Frei Damião, Baixa da Raposa, Antônio Vieira, Horto, Pio XII, Casas Populares, Pirajá, Aeroporto e Tiradentes.
É uma festa que remonta ao final do século XIX, conforme escritos de memorialistas, que desde então vem se desenvolvendo com muita vitalidade. Hoje, chama-se Quilombo a tradição de grupos de Reisado de Congo e Guerreiro saírem às ruas, acompanhados por bandas cabaçais, brincantes mascarados nomeados “cão ou entremeio, tocadores de pife, violeiros, sanfoneiros, zabumbeiros e outros instrumentistas.
O intuito é festejar o nascimento de Jesus, porém a celebração evidencia referências diversificadas, como tradições indígenas do Toré, a memória coletiva da luta entre mouros e cristãos, de reinados africanos, do Quilombo de Palmares e do mundo dos beatos sertanejos, estruturadas pelo universo do Reisado do Cariri.
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Reisado de Congo
De acordo com o pesquisador Oswald Barroso, no Ceará ocorrem cinco tipos de Reisado: Congo, Caretas/de Couro, Baile, Cablocos e Bois. O que predomina em Juazeiro do Norte é o Reisado do Congo, que se diferencia dos demais pelo uso de espada pelos brincantes.
A sede dos grupos de Reisado em atividade no Juazeiro geralmente é a residência do mestre, que localiza e espacializa os domínios do reino em determinado trecho da cidade. Ali o grupo desenvolve as atividades de resistência cotidiana. Dia após dia o mestre da Cultura exerce a liderança, ensaia, transmite saberes, educa as crianças, promove festas, as sociabilidades e o amparo social.
Incentivados pelo Padre Cícero, os reisados, além de brincarem o Quilombo no ciclo natalino, criaram rituais próprios como a bênção dos trajes na Colina do Horto. Os grupos também prestigiam romarias, batizados, casamentos, aniversários e Renovações nas casas dos moradores, onde rezam ao Sagrado Coração de Jesus e fazem a brincadeira do terreiro, com a representação de mais de 50 entremeios como o Boi e o Jaraguá.
O Guerreiro é uma variação do Reisado, desenvolvida por mulheres lideradas e inspiradas pela mestra Maria Margarida da Conceição.
Reisados tirando Quilombo
O Reisado que brinca o Quilombo em Juazeiro é liderado pelo mestre ou pela mestra, formado por dois palhaços Mateus com o rosto pintado com óleo de cozinha e carvão, cafuringa na cabeça e traje de palhaço, uma Catirina (personagem cômico de modo geral um homem vestido de mulher), o rei, a rainha e o contramestre, ladeados por dois cordões – de cada lado e em fila, embaixador, guia, contraguia, coice, contracoice e o bandeirinha.
Os brincantes vão às ruas numa marcha cadenciada, com os passos marcados pelo ritmo da banda cabaçal, pelos tocadores de zabumba, caixa, tarol e pífanos, com a participação eventual de sanfoneiros e violeiros.
Nos dias de Quilombo, os grupos se reúnem nas sedes logo ao amanhecer para a alimentação e o trajar dos brincantes, quando estes vestem saia, meião, peitoral de couro ornado com pedaços de espelho, capa bordada, capacete e espada. O Reisado de Congo que tira Quilombo em Juazeiro obedece ao seguinte roteiro: após a preparação na sede, o mestre ou outra pessoa designada por ele reza para pedir proteção na jornada de Reis.
O grupo sai em cortejo pelo bairro e aos poucos vai tomando a cidade ao som da zabumba, das caixas, da viola e do pífano, vivenciando uma sucessão de obrigações, penitências, aventuras e peripécias numa caminhada sob um sol escaldante, alcançando distâncias inimagináveis até o anoitecer, quando os brincantes retornam exaustos para suas casas.
Durante os cortejos, os reisados visitam as casas de amigos, outros mestres e brincantes aposentados, familiares de praticantes, simpatizantes e pessoas que contribuem financeiramente com a brincadeira, igrejas, locais sagrados como capelinhas, pedras e cruzeiros, onde “rezam” ou “tiram o Divino”, cantando e dançando peças antigas, alusivas às guerras quilombolas, à história de Juazeiro e ao Padre Cícero, bem como composições mais recentes, criadas nas toadas de valsas, baião e pinicados de viola.
O Reisado é seguido pela sua comitiva formada por moradores do bairro, familiares de praticantes e apreciadores que podem somar duas mil ou mais pessoas. A comunidade brincante é composta por agricultores, artesãos, vendedores ambulantes, trabalhadores autônomos, carroceiros, empregados domésticos, garis, catadores de reciclagem, estudantes e desempregados, que têm no Quilombo o seu centro de mundo.
Entremeios
Os caretas brincam anônimos sob uma máscara assustadora e macacão preto, portam um longo chicote de câmara de pneu que manejam no ar e golpeiam o chão produzindo estampido de tiro. Os entremeios ou ‘cão’ chegam às dezenas quando o cortejo está se preparando para sair e pedem a permissão do mestre para acompanhar o Reisado. Depois de se identificarem e ouvirem as recomendações do mestre, eles vão correndo à frente, estourando o chicote, provocando susto, medo e risos.
Encontro de Reisados
Nesse peregrinar pelas ruas, brincantes e acompanhantes vivenciam grandes provas de resistência física e emocional. Durante o cortejo, quando dois ou mais reisados se encontram, um complexo ritual acontece: animadas por toques de zabumba e pífano, trocas de embaixadas entre os palhaços Mateus, entre mestres, reis e embaixadores vão tornando a cena cada vez mais tensa, até que no auge começa a guerra – o jogo (combate) de espadas desencadeado com o objetivo de tomar a rainha do outro Reisado.
O Encontro de Reisados é o momento mais esperado do ano, é a apoteose da festa, quando os heróis são celebrizados pelas narrativas da comunidade.
A brincadeira com as espadas ocorre por meio da “marcação do ponto”: antes de golpear, o brincante avisa ao adversário, por meio de discreto movimento da lâmina, em qual parte do corpo irá atacar, para que o outro possa aparar o golpe e não se ferir, responder com o contra-ataque e assim os dois prosseguirem a brincadeira como uma dança guerreira, marcada no compasso do tilintar do metal.
Com destreza e coragem, os mestres lapidaram mais de 20 pontos para o jogo de espadas, por esse motivo, um novato afoito pode ser surpreendido, cortado ou ter a rainha tomada pelo adversário. Quando a menina de seis ou 10 anos é levada durante o jogo de espadas, a tradição diz que ela deve ficar sob os cuidados do outro grupo até ser devolvida no dia de Reis, no rito do “Trono da Rainha”.
Na véspera de Reis, os reisados confeccionam, próximo às suas sedes, uma estrutura alta e resistente com palha de palmeira macaúba trançada, adornadas com véu e cetim, decoradas com flores e joias.
No dia 06 de janeiro, os grupos de reisados, guerreiros e bandas cabaçais visitam os grupos de lapinhas, onde participam do rito da “Queima das Palhinhas”. Eles fazem encontros nas ruas e encerram a festa com a comunidade brincante no “Trono da Rainha”, com ritos e cânticos que varam a madrugada.
