Território
Juazeiro
Juazeiro do Norte é um município localizado no Cariri Cearense, com cerca de 300 mil moradores. “Porto seguro dos náufragos da vida”, tornou-se um território de culturas de resistência, clandestinas, continuadas pelos mestres da Cultura, moradores e romeiros do Padre Cícero, especialmente nos festejos do Ciclo de Reis chamados de Quilombo pelos mais populares.
A descoberta do Cariri cearense por grupos não indígenas remonta fins do século XVII, no mesmo período da guerra total da colônia ao Quilombo de Palmares. Em meados do século XVIII, o território já estava ocupado e em algumas das antigas fazendas, os escravos tinham a permissão para vivenciar suas culturas e ritos nas festas de Natal – o que contribuiu para a elaboração do Reisado de Congo e a transmissão das memórias da Guerra de Palmares por meio da Festa de Reis.
A tradição dos Congos no Cariri antecede a presença do Padre Cícero em Juazeiro, porém se desenvolveu com o trabalho do sacerdote e a chegada dos romeiros, principalmente depois do Milagre da Hóstia com a Beata Maria de Araújo (1889). O povoado, distrito de Crato até 1911, cresceu à feição de um grande Quilombo, com casas de taipa cobertas de palha, habitadas por descendentes de índios, negros, ex-escravos, caboclos e brancos pobres, que elaboraram as formas de um catolicismo popular animados pelos beatos.
Na festa do Quilombo acolhida e estimulada pelo Padre Cícero, é possível perceber o fluxo da memória que restaura e reinventa a tradição a cada novo ciclo dentro do seu possível histórico – uma linha de continuidades e rupturas que une África, Santidades Indígenas na Bahia, Quilombo de Palmares, o mundo beato e a Festa de Reis em Juazeiro do Norte.
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Padre Cícero e o Quilombo
Cícero Romão Batista nasceu em Crato em 24 de março de 1844, foi ordenado no Seminário da Prainha em Fortaleza em 1870 e iniciou o sacerdócio como capelão na Capela de Nossa Senhora das Dores em Juazeiro em 1872, quando instalou-se no povoado acompanhado da mãe, da irmã e de uma negra de idade avançada.
Cícero seguia preceitos de José Antônio Pereira¹, o Padre Mestre Ibiapina – fundador de uma irmandade de beatos, por meio da qual os sertanejos viviam um cristianismo prático com preocupações sociais na segunda metade do século XIX. Perseguido e banido do Ceará em 1872 pelo bispo D. Luis dos Santos, Padre Ibiapina havia permanecido longas temporadas no Crato, exercendo influência sobre o jovem Cícero Romão. Em terra conflagrada por mediações de poder entre coronéis, assoladas pela seca e pela fome, Padre Cícero foi um mediador do mundo beato com a igreja, as autoridades constituídas e o povo aflito do sertão.
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Durante a sua longa vida, Padre Cícero recebeu ricos e pobres com igual gentileza e atenção, não cobrou por serviços religiosos, aconselhou a paz entre famílias em guerra, intercedeu pelos famélicos junto ao governo, preocupou-se com a entrega da Amazônia a estrangeiros, fez circular a riqueza como um banco de micro investimentos, apoiou a abertura de oficinas de artesanato, gráficas, fixou o homem no campo e orientou o povo ao trabalho por meio de práticas agroecológicas, colocando a Cultura e o Meio Ambiente como questões centrais do desenvolvimento.
A prática humanista do Padre Cícero, o Milagre da Hóstia (1889) e os fatos inexplicáveis recorrentes com a Beata Maria de Araújo, associados às condições ambientais propícias à agricultura e à pecuária, as feiras e o comércio, motivaram o deslocamento de milhares de refugiados para viver junto do padrinho. Ao tomarem conhecimento dos fatos extraordinários alcançados pelo vigário, pessoas de todas as faixas etárias e famílias inteiras migraram confiantes nos poderes do sacerdote, em busca de salvação e melhores condições de vida.
Quando alcançavam a cidade, acampados debaixo das árvores na porta da casa do reverendo, os romeiros eram recepcionados com sorriso, benção, água, comida, escuta e conselho. Durante a conversa, era comum o padre perguntar a profissão, o que o romeiro sabia fazer e quando este respondia que era mestre de Reisado, ele o orientava a continuar a tradição até o final da vida como uma missão sagrada.
Ao padrinho, os romeiros pediam permissão para casar, viajar, brincar nas lapinhas e nos reisados. A grande maioria deles era oriunda de Alagoas, Sergipe e Pernambuco, terras onde localizavam-se os remanescentes dos mocambos de Palmares. Entre os adventícios, vieram beatos e beatas do Padre Ibiapina, habilidosos inventores, artesãos, artistas e mestres que partilharam saberes no Reisado e lapidaram a tradição da Festa do Quilombo no Dia de Reis.
Cícero organizava comunidades agrícolas na Chapada do Araripe, onde os sem-terra podiam se estabelecer para plantar alimentos, determinava que os pais colocassem os filhos como aprendizes nas padarias, oficinas de sapateiro, ourivesaria, funilaria e metalúrgica, entre outros a quem ele emprestava recursos para a compra de ferramentas e equipamentos.
No Juazeiro do Padre Cícero havia o tempo de trabalhar e o tempo do folgar. O padre incentivava a criatividade e a participação dos jovens nos reisados, bandas cabaçais e lapinhas. Assim, Juazeiro conformou-se como território de culturas populares, garantidas pelos beatos, amparadas pelo Padre Cícero, estabelecendo tradições que estão vivas até os dias atuais.
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